quinta-feira, 5 de junho de 2014

dos medos que geram amor. ou: dos mestres, com carinho. ou: obrigada, deus.

eu sei o que é ter um mestre, apesar de não saber ainda ser discípula como gostaria.
as inquietações carinhosas com que fui amamentada tornaram minha vida mais especial e linda já no primeiro instante no colégio em que, fugindo de uma surda autoridade institucional, intramuros, encontrei meu primeiro maestro, que sem grades, sem horários, notas, pagamentos, fez-me abrir em admiração a um mundo que então se ofertava, mas do qual eu só distinguia sobras. e, como um cristal magnético, atraiu minha fé, minha confiança e minha plena dedicação à sua honrosa presença. mas fosse apenas admiração, amor, por sua figura, o desencanto teria sido próximo. o que ele alimentava em mim era um amor pela música, aquela que eu tinha aqui dentro, mas sobretudo, aquela que ainda estava lá fora.
eu era bem jovem e já sabia o que me prendia ali: uma fonte de luz que não me dominava, não me assustava, não me subjugava, mas sim me preenchia, me alimentava, como se precisasse que eu crescesse para que ela mesma fosse maior.

foi ficando mais fácil reconhecer os mestres da minha vida, e lamento que não os tenha reconhecido todos, lamento que não tenha passado por experiências suficientes ao seu redor, mas percebo hoje, depois que alguns outros seres iluminados ampliaram meus vôos, que é mesmo propriedade dos mestres querer que você vá embora, que procure outros, que não esgote suas forças diante de sua luz. eles fazem você querer o mundo, e seu desejo se encoraja com suas orientações.

muitas vezes há uma certa dor nessa coisa de mandar você se afastar de certo modo, ir buscar luz adiante. pode ser sem querer, e envolve uma rejeição necessária, inconscientemente forjada pra que se rompam cordões. meus mestres nunca admitiram cordões, quando eu muitas vezes criei e me agarrei neles, e me parece que quando eles sem se dar conta, iam nutrindo suas amarras, eu mesma estava preparada pra cortar com violência os laços que nos limitariam. o desapego cortava correntes, e, ao mesmo tempo, os caminhos da vida sempre reequilibraram as coisas de modo que logo era possível estabelecer novas relações e trocas, confirmar a admiração, reforçar os cortes, desfrutar dos vôos.

bem... o primeiro deles era bem velho, falava como meu avô. me fez ver o mestre em meu avô, também, e me acompanhou por anos, até fazer com que eu quisesse outras experiências musicais-afetivas-pessoais. me chamava de deusa, e me fazia estudar como o diabo. dizia com a voz e a disciplina de um oficial aposentado: ¨feliz do mestre cujo aluno ultrapassa¨, e ¨errar é humano, mas quem erra demais é burro¨. dizia que uma das coisas mais importantes do mundo era o ¨brio¨ da pessoa, e eu ao mesmo tempo deliciosamente escutava que o mais importante era o ¨brilho¨, o que sempre fez o maior sentido, mesmo.

teve outra, que por apenas três ou quatro anos permitiu-me os mergulhos poéticos até então desencorajados pela família e pela escola. ela era terrivelmente mulher, e me amaciou um pouco, tendo em troca sorvido minha rebeldia ácida.

depois teve aquele... menino... e que por muitos anos foi um segundo pai, mais honesto com relação ao risco que é viver. era de quem eu sempre esperava que dissesse se estava louca ou se estava certa, e se isso podia ser bom ou ruim. me encorajou, cortou minhas frescuras, cortou minhas tranças. me transformou completamente, me guiou a tantos - e tão longe - encontros com outras grandiosas fontes de inspiração e crescimento, que desabrochei-me em flores. antes que eu lhe agradecesse, foi ter ele mesmo com novos guias, foi voar com pássaros, ficou encantado.

do nada então me vi diante de um mestre absoluto, controverso, misterioso, que veio de muito longe e me adotou por alguns anos e me premiou e protegeu com sua companhia fecunda, intensa, espiritual e absolutamente apaixonada.

a próxima cantou como uma sereia, de um modo tão irresistível que mergulhei pra nunca mais voltar. me alimentou e encorajou quase como minha própria mãe, deslocou meus sentidos e minhas crenças, e com isso perdi um mundo em que podia ser rainha pra ganhar alguns outros tantos em que eternamente serei andarilha. e, tanto permitiu que eu ousasse, tanto alimentou minha extrema rebeldia, que, por fim, rompemos.

depois ninguém mais me adotou. ninguém me levou pra casa, ninguém me preencheu de modo tão intenso que durasse aquela eternidade-até-a-ruptura. talvez isso nem nunca mais aconteça dessa forma, agora que minha jovialidade interessante deu lugar a uma visível crise de fim brusco de ciclo profissional em descompasso com uma vida afetiva em doce infância, os sonhos a nordeste, os talentos adestrados a oeste, as lembranças todas submersas, prontas a explodir como vulcão.

mas encontro tanta maestria nas pessoas que me inspiram, que me pergunto se não estou em pleno terremoto dispersivo no mundo das minhas afetividades. e quando penso, meu deus, é incrível demais pra ser verdade, mas como pode uma pessoa como eu ter-se encontrado, de repente, em tantas e tantas e tantas e tantos encontros ligeiros e intensos, com mestres tão transformadores que com uma conversa abriam meu coração e metiam dentro dele coragem e amor, e que com os olhos e poucas palavras fizeram minha vida inteira já ter valido a pena? aí, se eu for pensar em cada um num só dia, meu coração não resiste.

inês, escrevendo dissertação, com os instrumentos guardados debaixo da cama há 1 ano, após 15 de explorações sonoras, e desejando plenos vôos.

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