sábado, 23 de maio de 2009

Esses dias fui beijada

Primeiro foi num dia depois do samba.
Eu estava num estado que misturava exaustão física e psicológica, aparente embriaguez e preguiça de fazer algo que não fosse sentar, fumar, trocar uma idéia de leve e sair furtivamente quando quisesse.
Só que, por azar, fui cair numa mesa onde nem todos tinham os mesmos planos com relação a mim. Um anjo - meio safado - se aproveitou de minha nobreza, e, quando percebi, todos os olhares que eu trocava no lugar de repente se apagaram.
Carinho é bom, e eu quase não sei dizer não.

Depois foi no dia do grande espetáculo.
O Caio sempre foi meio apaixonado comigo, desde quando nos conhecemos e nos beijamos no meio do cenário do Teatro Municipal. Eu achava que era só safadeza, pq a gente se pegava em lugares proibidos, e pq ele descobriu minha íntima aversão à calcinha. Mas em vez de transformar nossos segredos eróticos em sexo, ele sempre cultuou minhas miudezas como pequenas descobertas sagradas, sempre me conheceu aos poucos, como deve ser quando um ator constrói uma personagem tão forte que se liberta, quando um pintor descobre seu quadro e o concebe, tão estranho, tão diverso à idéia original, tão assustadoramente seu e ao mesmo tempo tão não-seu: verdadeiro, único, vivo.
Foi me descobrindo com a delicadeza com que se descobre o prato especial que se está criando. (Caio talvez tenha me amado como se ama um molho de Framboesa.)
E, depois de anos sem que a gente trepasse de fato, depois de lagriminhas quando eu recusava beijos e carinhos, depois de sorrisos ingênuos que irrompiam à minha aparição, fui perceber que talvez ele estivesse se envolvendo sozinho nalguma história entre a gente, eu simplesmente perdida nas sensações provocadas por seus caixinhos, pela ponta macia dos seus dedos, pela respiração morna e preguiçosa no meu ouvido, e ele buscando alguma permanência inexistente na fundura no meu olhar.
Então eu sumi.
E o tempo, que nunca se faz de rogado, passou impiedosamente.

Outro dia nos reencontramos, e ele me deitou no colo dele e ficou alisando os meus cabelos. Eu deixei que acontecesse, e por instantes cheguei a pensar em chorar.
Subimos crianças as escadarias do teatro, nos metemos no baile cinematográfico de cordas, cortinas e projetores, nos perdendo no escuro daquele espaço gigante e habitado por criaturas cênicas, materiais esquecidos, ferragens, roupas (e sonhos).
Todo o universo de efígies adormecidas do teatro testemunhou nosso beijo desengasgado.
Houve um momento em que um dos técnicos do palco passou caminhando por nós. E talvez ele já soubesse de todas as histórias daquele palco, como um pipoqueiro que sabe de todas as histórias de uma praça.

Essa vai ser nossa última lembrança, Caio lindo... Recendendo a gelo seco, panos velhos, suor, incenso e óleo de engrenagens. Uma lembrança com cheiro de teatro.
Repleta de beleza.
Inteira como um poema.

Inês

domingo, 17 de maio de 2009

Perto dos tambores e das estrelas

Os botecos de ontem estavam exatamente iguais aos botecos de qualquer outro dia, e então um inquietamento súbito me uniu a meus companheiros e nos levou ao lugar mais alto - e frio - da cidade, com nossos instrumentos suados de ensaio.
Nosso único pesar era não ter maconha.
E não é que, lá, encontramos um grupo conhecido, criaturas da noite que estavam fazendo som desde cedo? (Inclusive com um beck que veio dum pé de 2 metros regado com muito carinho por um deles...)
Caixa de Folia, Didgeridoo e Djambês nos levaram a um transe sagrado coletivo, e por muitos instantes a existência inteira se integrava no ritmo puro de uma delícia irrecusável... E ao mesmo tempo um silêncio quase universal, o som dos tambores ascendendo a um plano superior, e nós, todos, submergindo mansamente naquela atmosfera de amor e sonhos que nascia dentro de cada um, e, num estalo, explodia em estrelas, que nos espiavam envaidecidas.
Naquela noite fria, acho que todos buscávamos os sons da floresta. A maioria, que tinha acabado de vender umas 10 horas de vida pra um patrão totalmente desconhecido, cantava ali seu canto de liberdade, e chorava de dor e saudade pela morte das águas, das plantas e dos bichos.
Em algum momento, o frio impiedoso foi mandando, uma a uma, aquelas criaturas lindas embora. Eu, que fiquei entre os últimos, fui trazida a casa por um príncipe de olhos brilhantes, que, como um anjo de asas veludosas, me trouxe no sono uma paz e uma pureza que muito me faziam falta.

Inês

quarta-feira, 13 de maio de 2009

À minha boneca de piche

Em casas abertas e noites de festa os seus olhos sem-querer-querendo engoliram os meus. Eu me vi por diversos instantes espalhados, inteira e do tamanho de um bacilo, caminhando serelepe pelas linhazinhas da sua Íris, sentindo de perto a luz que sempre emanou da sua criancice risonha e voluptuosa. Chocolates, fotos, vinhos e carinhos são coisas que pertencem somente a nós duas neste mundo. E Paris e Tuffault foram feitos simplesmente para o perambular dos nossos sonhos.
Quis tantas vezes ter o seu cheiro, e ele agora é inevitavelmente meu também. Nossos beijos, nossos descuidos maliciosos, nosso silêncio inquietante e tão pleno de não-saberes, nosso dessexo... Tudo aquilo rasgou a minha pele inteira (desde o início...)
Dormir chorando é um conforto, acordar chorando é um desparaíso melancólico – e eu sei: a tristeza pode acabar com uma pessoa...
Ver seu sangue coagulado na sua pele tão de moça foi de repente saber que a verdade existe. A verdade existe e escorre pelas nossas ilusões, tornando tudo um borrão ocre sem brilho, meu amor...
Te vi a boneca de piche das nossas historinhas, e seu olhar me agrediu tão provocadoramente, e a sua forma física obscena sugou meus punhos e dedos do pé tão violentamente pra dentro de você.
Hoje eu sou o monstro de piche, o grande monstro imóvel, pegajoso e revirado ocupando o que antes era seu lugar...
E você, pra onde foi que não te enxergo? Não consigo me virar... Acho que te perdi.
Por favor, se encontre, meu amor. Que eu não posso mais te ajudar.

Inês

sábado, 9 de maio de 2009

Buraco

Ganhei carona pra um lugar interessante da cidade, quando a aula terminou. E, afinal, era sexta feira, e eu também tinha o direito de me perder.
Percorri as ruas do bairro em que estava, provando cervejas em mesas acolhedoras, dando minhas canjinhas modestas e bolinhas em baseados de vários formatos, tamanhos e temperos...
Delícia divina ouvir um pouco de tantas histórias! São contos-de-fadas acontecidos em terras e tempos distantes: o outro. Que se abre como um girassol diante de mim, me faz me sentir ainda criança descobrindo o mundo.
O encontro me ilumina, a troca me alimenta, o sonho me motiva, e o álcool talvez entre na lista somente pra me entorpecer, mesmo...
Saber tantos mundos diferentes, neste só, consola meus dias, aquieta meus medos - e desperta tantos outros - e sacia meus desejos.
Caminhei sozinha de um bar a outro, e como queria que fossem cidades! Constelações...

Em algum instante da noite, o buraco que existe dentro de mim começou a crescer e a consumir meus passos. A acomodação política, a alienação medíocre e o acúmulo de sangue nas partes baixas, que tantas vezes entopem os botecos, e que me alcançam por gargalhadas, discursos e erotismos alheios, tornavam minha existência insustentável. Ai, o gosto amargo das limitações humanas...
E me peguei, de repente, procurando, a cada esquina, o olhar virulento de Luiz Gabriel, minha atual projeção de alguém que eu gostaria de levar e ser levada pra lugares como o Jalapão, ou a pracinha atrás da minha casa, e com quem não consigo estabelecer nenhum vínculo prático, nenhum diálogo coerente, nenhum telefonema, nenhuma resposta segura, nada que supere a frustração de nosso contato diário tão quente e tão frio. (Diante dele só resta alguma parte de mim, aquela parte monstruosa que não domino, e que devora todos os meus outros pedaços como um animal estúpido.)
Cada encontro com Luiz Gabriel me corrói, e na hora não quero mais sequer existir.
Mas com o tempo isso passa...
Eu sei.

Em noites como esta, olhares noturnos de qualquer espécie me causam náusea.

Ah... Preciso embora.

Inês.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Náusea

Foi muito café e muito cigarro. Muito salgado engordurado do centro da cidade. Muitas cobranças da minha mãe sobre exames, médicos, posturas e condutas, etc etc... Haxixe e maconha. Pessoas se atropelando nas ruas e enchendo o mundo de lixo e de odores desagradáveis. Calor. Fumaça. Remédios. Ônibus cospindo poluições sonoras diretamente dentro do meu corpo. E, sobretudo (acho), o mal estar causado pelo erotismo que surgiu de instantes trocados com Luiz Gabriel, o colega poeta e genial que me sufoca com tanta crueza, exigindo tão manipuladoramente que eu seja outra pessoa que não eu mesma- de propósito?
Acho que comi demais e preciso vomitar.
Depois, quem sabe, me restaurar com chá de hortelã ou suco de abacaxi.
Não tenho disturbios alimentares. Tirando a compulsão, que se alastra por todos os meus atos e consumos.

Inês.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Passos fêmeos

Ontem toquei com meu grupo de samba.
Sou flautista.
(O que, a propósito, minha família até aceitaria, a princípio, desde que a Filarmônica estivesse em meus planos mais próximos... Mas a cada dia é o som dos loucos e dos botecos que mais me domina e aprisiona, o que gera um pronunciado e amargo DESGOSTO nos meus pais. Sorry...). Depois que o bar fechou e todos do grupo foram embora, saí andando em direção a um outro bar que tem um chorinho até mais tarde (todos colegas meus), e onde tantos músicos de tantos sons diferentes se reúnem para os últimos suspiros antes que a segunda-feira se descortine por completo.
E como sempre me sentei em muitas mesas e tive muitos copos de cerveja.
Ouvi algumas vezes que eu estava linda e que minha boca parecia um não-sei-o-quê vermelho e bonito, mas por olhares que não me emocionaram muito.
Fumei perto da janela, olhando a noite lambendo as ruas e árvores e carros molhados de sereno (ou suor?).
E, como sempre, deslizei pela escada sem nada deixar de mim lá dentro, exceto um livro que acabara de ganhar de presente e esqueci nalguma cadeira - tristeza! -, e um pouco do meu perfume de frutas e especiarias (meu único segredo sexual mais secreto que meus cílios postiços).
Longos momentos depois, em meu quarto (é impressionante como NUNCA repeti nem uma vez sequer algum método de voltar pra casa, onde quer que eu me tenha jogado), me embrulhei nas cobertas até que a manhã entrasse pela janela (ou minha mãe entrasse pela porta, se lamentando que essa vida de música tem sido minha desgraça - oh!).
...
Oh!

Inês

domingo, 3 de maio de 2009

Só isso.

Caminhei pelas ruas durante a noite toda.
Acompanhada somente por um grande gato negro de olhos brilhantes, que seguia silencioso meus passos, lambendo delicadamente as estrelas que encontrava nalgumas poças d'água que havia no caminho.
Bebi vinho...
Fumei.
Encontrei pessoas igualmente errantes. Me assustei com gargalhadas que irrompiam na noite e flertei muitas vezes com janelas abertas.
Abracei velhas árvores, que me acolhiam com a ternura de ruas com cheiro de infâncias antigas.
Por fim, adormeci na escadaria do prédio de uma amiga que já não morava lá. E despertei com a fome da manhã que se descortinava pelos poros do antigo edifício.
Chegando a casa, cumprimentei meu pai, que lia cafeínicamente seu jornal, e me perguntou como havia sido a noite de filmes na casa de uma colega.
Ótima.
Tomo agora o banho dos justos, e lavo minha pele e meus cabelos, impregnados de noite e de sonhos.

Inês.

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