domingo, 16 de agosto de 2015

recife mandou me chamar

há um lugar no mundo que jamais poderia ser conhecido por mim: quando nos encontramos, o que houve foi mais um reconhecimento, uma descoberta de algo que já corria no meu sangue desde antes de eu nascer. A cidade de Recife, no Brasil, recebeu meus antepassados africanos, e, durante séculos, drenou-se de seu suor e suas lágrimas, de seu sangue, e do açúcar que, escravizados, eram obrigados a produzir. Príncipes e princesas negros atravessaram o oceano e ali foram comercializados como se não tivessem alma. Mas seus corpos eram sagrados, e os orixás que os acompanharam até aqui refugiaram-se nas matas, nas pedras, nas folhas e no vento, de modo que, hoje, cada micropartícula da cidade do Recife vibra com sua força de um modo incontrolável. Se, por um lado, a opulenta arquitetura colonial consegue nos transportar a um passado de sofrimento, que jamais deve ser esquecido, sabemos que cada uma das pedras que ali foram erguidas foram, antes de mais nada, tocadas por esses nobres africanos. Passar pelas pontes sobre o rio Capibaribe e acompanhar o lento curso que vem trazendo as águas do Agreste Pernambucano, é ao mesmo tempo ser atravessado pela ventania ensolarada que o mar, logo ali, faz jorrar pela cidade. 
se a noite é um mistério que esconde histórias do mar, feitiços, pernadas de capoeira em esquinas vazias, o dia explode em cores e luz, delírios sonoros. Recife-Babilônia, que no carnaval transborda de frevos - orquestras enormes com ritmos quentes -, maracatus centenários que louvam o deus Xangô e fazem tremer as portas, as casas, os pés e o coração, e mais côco, caboclinhos, xote e baião, até que na melancólica quarta-feira de cinzas dissolve-se em bois encantados que descem a rua da Boa Hora em Olinda, despedindo-se da cidade em retorno para os interiores do estado.
no mercado, os peixes, as carnes salgadas, os frutos coloridos, o fumo, o couro de bode, as folhas mágicas que índios e negros conhecem e vendem, panelas, castanhas, cabaças, histórias de cordel, política, poesia, segredos, receitas... tudo se mistura pelas bancas e ruas e portas, num misto de grito e segredo, de cheiros que se reforçam e se disfarçam: o mercado é um eterno encontro e uma eterna procura.
por trás da cidade, o mar. A mãe cristalina que oculta cavernas, corais, tubarões e silêncios. Onde o mangue sobrevive ainda e estala, homens-caranguejo procuram mariscos, prostitutas pobres vendem sua sorte e seres confusos se drogam escondido. Crianças sem medo arrancam as roupas e mergulham entre ondas.
aqui e ali, oferendas sagradas. Flores, velas, bebidas, galinhas, esperam nas encruzilhada que o deus Exu as aceite. Senhoras espreitam pelas janelas o olhar das pessoas que se apressam nas ruas. A fala do povo é cantiga, paisagem sonora. Não se diz "me dê um beijo", mas sim "me dê um cheiro". Resistindo à violência ainda colonial do Progresso e da ordem, deuses guerreiros dão força aos corpos que lutam diariamente, e deusas de fecundidade confortam suas filhas. Há em Recife um passado sagrado que se alimenta de vida, de modo que, ali, é impossível sentir-se só. Aparentemente confusa, a cidade se conecta, o sol acelera os gestos e a fala, o vento organiza, o mar abençoa. Sentimos tudo vibrar, por dentro e por fora.

inês


segunda-feira, 9 de março de 2015

línguas

palavra fere (palavra-arma). da fala que prende, quero o que cala. quero o som que voa, a palavra do corpo que sopra e que é poesia: olhos que se encontram e degustam seu reverso (olhar é verso), dedos que navegam no mar da pele (esse mundo do outro, que palavra repele), sangues que movem carnes e unem mundos, almas que voam pra fora de si. quero desejo que não cabe na palavra, amor que escapa à fala, coragem que foge das letras, vida que vira um universo, explodindo no gozo conjunto do encontro entre corpos e cheiros e línguas e olhares. há sopro no corpo, e, no corpo do outro, há mar, e isso basta pra fluírem os rios das veias e as linhas das mãos que caçam esse corpo-fora. o corpo é agora. palavras cansam, mas o corpos dançam.
e por mais que eu tenha querido ouvidos queridos, meu corpo vive e quer explodir. respiro, e sopro, e sinto, e sirvo, e queimo, e vôo. e se o peito se empedra, fura fundo a nova fonte que ainda pinga (mas guarda uma água cristalina, prestes a jorrar pelo mundo, pelo meu corpo, pelas pedras e palavras, nascente). se eu tenho sentido ainda, as palavras é que não tem mais. meu corpo-verdade deseja conversa com cheiro, riso engasgado entre línguas, pensamento que voa leve quando a cabeça mergulha num coração que não é o meu, mas me corrompe. falar é tentativa, amor é mais coragem. palavra não tem vida: o corpo é liberdade.

inês, sentindo o coração bater nas unhas.

domingo, 8 de março de 2015

encruzilhada

gosto quando as letras destilam sentimentos. palavra é impureza, o invisível voa longe. descem pela escrita os engasgos que eu sinto (palavra é liberdade, lança os olhos no infinito). escrevo, e algo soa: meu coração revirado se liberta das imagens, vira som, me ultrapassa. e enquanto o tempo passa, algo morre, algo nasce, e por mais que algo renasça, não há tempo que reverta um processo de desprendimento. mas sei que dei uma volta grande e voltei a um lugar contíguo àquele onde me perdi. voltei outra, mas voltei toda. senti o que realmente importa. o que era meu, botei à prova, o que era eu, mandei embora (embora eu sinta também os espinhos que entram mais fundo, o correr do tempo, o medo do mundo). ainda sou só, mas cada vez mais só sou: dividida, incompleta, presa e livre, mutável, algo perdido e algo além. vejo que estou perdendo um alguém que sou eu mesma, escorrendo quente, entre braços e cheiros que me envolvem e que me devolvem um descontrole que é existir, a liberdade que é não pensar, enquanto as palavras guardam lembranças, os sonhos trazem promessas, os sons libertam sentidos, o silêncio consome os medos, a mente confunde o corpo, o corpo confunde a mente, o cheiro tira a razão, a distância segura o juízo, e o vento revolve tudo.
queria saber o que faço com isso, mas querer não basta pra mulher enorme vivendo aqui dentro, (querendo ser plena), porque sou pequena e não meço meus passos. mas peço perdão a quem eu assusto, e é o melhor que eu faço: assumir meus embaraços, silenciar meus discursos de fuga e ouvir os descompassos do coração que ainda bate aqui dentro, e no qual nunca vou poder caminhar.

inês.

quinta-feira, 5 de março de 2015

de um amor que se foi

"baby, a vontade de te pedir desculpas, nem sei o tanto porque, (mas até sei), mas falo de novo o que quase não me canso de falar: tá certo, tenho inumeráveis defeitos, certamente em grande parte desestimulantes, mas talvez tenha algumas qualidades ocasionais... te gosto dum tanto sem medida, acho até que talvez vc não perceba o quanto a recíproca é verdadeira...
[...]
realmente não posso deixar de ver repetidamente confirmada nossa afinidade profundo, sincera e, quase ingenuamente inexplicavel... ah, pra variar, falo demais, num estado, que embora perigoso e duvidoso, é profundamente sincero... avec mon eternell amour... bisous!
sorry maybe, baby! beaucoup d'amour á toi, á moi et á nous..."

(de um pássaro amado e mais ainda amante, que se entregou tanto ao mundo e foi brutalmente assassinado por alguém sem coração.)

um irmão
(aquele que foi mais dentro e foi mais longe)
paz brutalmente estrangulada e convertida em vôo, enfim
(que nossa dor se transforme...)


inês. 

segunda-feira, 2 de março de 2015

livra

mundo cão
e eu nem quero saber que graça tem esse uso inescrupuloso do sonho do outro, pra se sentir podendo mais, fodendo escondido, vingando as próprias carências quando o outro despenca no abismo dos  próprios medos e egoísmos e egos. e no fim, o que sobra? monstros enormes, o engasgo do apego, o avesso da troca, o sufoco de um vôo daquilo que só esperou e esperou e não fez a hora de se lançar.
pra que? de novo, e de novo? o que rompe esse ciclo?
o que explode esse ego? o que é preciso deixar?
qual será o instante preciso no qual escorregamos pra dentro, ou pior, temos a ilusão de um desprendimento e uma entrega que nunca aconteceram?
afinal, é pra quê, esta vida?
é o quê, ser só? é o quê, só ser?

inês.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

vai lá, sabiá

o amor de verdade passou, e eu perdi o momento, voou. meu corpo se lembra, meus sonhos se lembram de um mergulho intenso e ao mesmo tempo leve, das coisas miúdas sendo construídas, do tempo brincando na nossa cabeça. mas eu não me lembro do rosto, da voz, do gosto, do nome... não sei onde houve, nem quando, nem quanto, mas sei que se foi, como um pássaro que cantasse "mas que pena, passou na janela, entrou da janela, voou pelo teto, pousou no lençol, e ela não viu, não quis, não soube ou não viu, e agora perdeu".
e aí, eu que entenda, a vida não faz castigo.
esse mundo de olhares perdidos, desejos egoístas, de medos e solidões, de usos dos outros, dos corpos, dos sonhos, esse tanto de nãos, de descaso, desinteresse, traição, ingratidão, desconsideração, desilusão, essa saudade fudida daquela confiança amorosa que passou e eu nem vi, nem lembro e perdi, tudo isso é pra sofrer bastante, bota uma pessoa sem rumo e sem chão.
eu que aprenda a notar a preciosidade das asinhas duma mariposinha qualquer, e abrir as janelas de novo. ser eu mesma a voar lá fora, que aqui dentro não para nunca mais de doer.

inês.

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