há um lugar no mundo que jamais poderia ser conhecido por mim:
quando nos encontramos, o que houve foi mais um reconhecimento, uma descoberta
de algo que já corria no meu sangue desde antes de eu nascer. A cidade de
Recife, no Brasil, recebeu meus antepassados africanos, e, durante séculos,
drenou-se de seu suor e suas lágrimas, de seu sangue, e do açúcar que,
escravizados, eram obrigados a produzir. Príncipes e princesas negros
atravessaram o oceano e ali foram comercializados como se não tivessem alma. Mas
seus corpos eram sagrados, e os orixás que os acompanharam até aqui
refugiaram-se nas matas, nas pedras, nas folhas e no vento, de modo que, hoje,
cada micropartícula da cidade do Recife vibra com sua força de um modo
incontrolável. Se, por um lado, a opulenta arquitetura colonial consegue nos
transportar a um passado de sofrimento, que jamais deve ser esquecido, sabemos
que cada uma das pedras que ali foram erguidas foram, antes de mais nada,
tocadas por esses nobres africanos. Passar pelas pontes sobre o rio Capibaribe
e acompanhar o lento curso que vem trazendo as águas do Agreste Pernambucano, é
ao mesmo tempo ser atravessado pela ventania ensolarada que o mar, logo ali,
faz jorrar pela cidade.
se a noite é um mistério que esconde histórias do mar, feitiços,
pernadas de capoeira em esquinas vazias, o dia explode em cores e luz, delírios
sonoros. Recife-Babilônia, que no carnaval transborda de frevos - orquestras
enormes com ritmos quentes -, maracatus centenários que louvam o deus Xangô e
fazem tremer as portas, as casas, os pés e o coração, e mais côco, caboclinhos,
xote e baião, até que na melancólica quarta-feira de cinzas dissolve-se em bois
encantados que descem a rua da Boa Hora em Olinda, despedindo-se da cidade em
retorno para os interiores do estado.
no mercado, os peixes, as carnes salgadas, os frutos coloridos, o
fumo, o couro de bode, as folhas mágicas que índios e negros conhecem e vendem,
panelas, castanhas, cabaças, histórias de cordel, política, poesia, segredos,
receitas... tudo se mistura pelas bancas e ruas e portas, num misto de grito e
segredo, de cheiros que se reforçam e se disfarçam: o mercado é um eterno
encontro e uma eterna procura.
por trás da cidade, o mar. A mãe cristalina que oculta cavernas,
corais, tubarões e silêncios. Onde o mangue sobrevive ainda e estala,
homens-caranguejo procuram mariscos, prostitutas pobres vendem sua sorte e
seres confusos se drogam escondido. Crianças sem medo arrancam as roupas e
mergulham entre ondas.
aqui e ali, oferendas sagradas. Flores, velas, bebidas, galinhas,
esperam nas encruzilhada que o deus Exu as aceite. Senhoras espreitam pelas
janelas o olhar das pessoas que se apressam nas ruas. A fala do povo é cantiga,
paisagem sonora. Não se diz "me dê um beijo", mas sim "me dê um
cheiro". Resistindo à violência ainda colonial do Progresso e da ordem,
deuses guerreiros dão força aos corpos que lutam diariamente, e deusas de
fecundidade confortam suas filhas. Há em Recife um passado sagrado que se
alimenta de vida, de modo que, ali, é impossível sentir-se só. Aparentemente
confusa, a cidade se conecta, o sol acelera os gestos e a fala, o vento
organiza, o mar abençoa. Sentimos tudo vibrar, por dentro e por fora.
inês