carta ao monstro zed
você sabe ler, zed?
seus olhos... são de verdade?
não foi a primeira vez, zed, que um monstro
me usou. aliás, já fui antes usada por monstros, por homens, mulheres,
instituições, e até mesmo pelas minhas próprias vaidades, meus medos, meus
monstros.
mas de certa forma, sempre houve alguma
espécie de perdão, de auto-perdão, essa luz cristalina que brota dentro das
pessoas que tem órgãos.
desta vez, não houve ainda palavra na sua
boca, nem na boca de ninguém que assistiu à sua monstruosidade. percebi que
deus coloca palavras na minha boca, mas não consegue colocar na sua.
eu sinto até que muitas vezes esse deus
pode ter querido que eu sofresse, pra renascer e descobrir meus próprios
monstros e minhas próprias luzes.
mas você deve ser um monstro de outro
mundo... de um mundo que não consigo mais acessar à gerações, onde talvez os
deuses sejam mais cruéis e permitam que se use uma pessoa até não haver mais
qualquer indício de luz. acredito que os monstros desse mundo sejam tão falsos,
vazios, traiçoeiros, que a gente não enxerga a pedra escura e inerte que eles
têm por dentro, a gente vê neles só um espelho, de aparência cristalina e
luminosa, e acredita que está olhando quem sabe pro próprio deus, pra alguém
igual a gente, pra alguma coisa de saúde, de amor, de verdade. mas acho que no
seu mundo não existe verdade, zed.
e o que se expôs, em nosso triste encontro,
talvez tenha sido a inverdade do meu próprio deus, do meu próprio mundo, a
inverdade dos meus olhos, minhas fraquezas, meu vazio. ou talvez uma verdade
dolorida dessas coisas todas, uma verdade que não consegui suportar, a verdade
de que monstros como você sempre vão andar por aí, sugando quem quer que os
encontre e se encante por suas mentiras.
você matou minha fé. você me matou.
eu te disse que você estava me matando, na
esperança de que talvez você interrompesse o que estava fazendo, mas você fez
ouvidos moucos, você me devorou até o final.
eu vi que você pagou de louco, zed, eu quis
contar pra todo mundo.
teve quem também tenha visto, e inclusive
me alertado, mas muitos não viram, igualmente devorados pelas suas mentiras,
muitos me disseram “é assim que os monstros são”... e hoje já não sei onde
estão essas pessoas, porque perdi o contato de todas, parei de vê-las, e elas
pararam de me ver também.
a verdade, onde está? comigo, não. ela
certamente anda por aí, e de vez em quando se encontra comigo, e eu desejei que
alguma vez ela também se encontrasse contigo, mas hoje entendo que ela não
adentra monstros do seu mundo, que talvez você tivesse que nascer de novo
muitas vezes pra quem sabe ter olhos pra enxerga-la, ou ouvidos pra escuta-la.
quem sabe um dia você possa mesmo dize-la, sê-la, mas pelo que percebo, esse
dia talvez ainda esteja longe... ou talvez um dia desses... você se veja num
outro mundo, ou encontre outro monstro, que te faça morrer e renascer muitas
vezes de repente, e então seus olhos sejam refeitos de cristal, de água, de
qualquer matéria viva, mais aberta e transparente que essa superfície inerte,
fria, maldosa que você expõe quando abre as pálpebras.
eu sei que se você morrer e renascer muitas
vezes, vai acabar nascendo com uma luz própria, porque isso é quase kardecista,
budista, hinduísta, mas acredito que é assim que as coisas acontecem.
as verdades são muitas, mas todas são uma
só, para monstros, deuses e pessoas, no meu mundo e no seu, agora e sempre.
é por isso que você não diz mais nada desde
que sua mentira se revelou: porque não tem verdade pra dizer, e nem deus que
diga por você.
quando me pergunto que tipo de monstro você
é, percebo que encontrei o monstro mais perigoso pra um ser humano: o monstro
da mentira e do desejo, o monstro que desarma nosso corpo, que expõe nossos
olhos e coração, que me fez de repente querer tudo, e que aos poucos me tirou tudo.
você é um monstro que conseguiu me fazer não querer mais nada, a não ser morrer
e nascer de novo.
quero que renasça minha luz, zed. quero que
o deus que me habita não espere nada do seu.
quero esquecer você pra sempre, e não
esperar que você consiga abrir a boca e dizer alguma coisa que não seja
mentira, abrir os olhos de verdade.
quero mais ainda que em mim brote a luz do
perdão. quero perdoar a mim mesma, a você, esse monstro que me feriu por
covardia. quero perdoar a deus.
quero a luz da liberdade.
por favor suma dos meus pesadelos, por
favor vá embora pra quem sabe morrer e renascer num mundo menos monstruoso que
o seu.
inês
carta a deus
querido deus, eu não sei rezar. já tentei
tantas vezes, já acendi vela, já fumei maconha, já cortei a maconha, já
obedeci, já meditei, já dancei com índios, já chorei cantando samba, já repeti
palavras, já saudei o sol, as folhas, o vento, as águas, a montanha, tudo. mas
não sei se alguém já me escutou de verdade. não sei se já obtive qualquer
resposta, positiva ou negativa. não sei se estive apenas tentando conversar
comigo mesma.
acho que me iludi ao sentir as ondas
batendo, o vento, o fogo, o amor, os sons e o silêncio do mundo, e achar que
estava entendendo tudo.
porque... o que havia dentro de mim secou,
e já não sei como fazer pra que alguma parte brote de novo. há algo que nasça
das cinzas? nem minha mãe Iracema me contou, ainda.
perdi meu amor, minha paz, minha coragem,
perdi minha casa, meus irmãos – terei perdido todos? já terei tido algum?
porque isso está acontecendo justo comigo,
que sempre me senti abençoada, viva? porque eu, meu pai? me abandonastes ?
estou triste, mas muito mais do que triste,
estou morta.
eu suplico, preciso que alguma coisa nasça,
aqui dentro.
(nem que seja só minha fé)
inês, morta.
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